No estudo da Epigenética foi constatado que, pessoas que passam por intensas provações psicológicas, o DNA pode sofrer modificações que serão transmitidas aos seus filhos, tornando-os mais vulneráveis a diversos distúrbios psicológicos.
Em 11 de setembro de 2001, as torres gêmeas do World Trade Center ruíram em meio a uma névoa de horror e fumaça. Após este trágico acontecimento, os médicos da Escola de Medicina Icahn, no Monte Sinai, em Nova Iorque, sugeriram que todas as pessoas nas proximidades do desastre verificassem se tinham sido expostas a toxinas. Entre os que compareceram estavam 187 mulheres grávidas. Muitas dessas mulheres ficaram em estado de choque, o que levou um médico a procurar a ajuda da Dra. Rachel Yehuda, psiquiatra, para diagnosticar e monitorar essas futuras mães. Pois elas corriam o risco de desenvolver transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, o que significa sofrer de flashbacks, pesadelos, “entorpecimento emocional” e outros sintomas psiquiátricos durante anos. Mas uma das preocupações principais não era apenas sobre essas mulheres: Era também os seus fetos. Será que eles também estavam em perigo?
A equipe da Dra. Rachel Yehuda, especializada em traumas, treinou rapidamente profissionais médicos para avaliar e, se necessário, tratar essas futuras mães. As mulheres foram acompanhadas durante e depois da gravidez. Quando os seus bebés nasceram, eles eram menores, em tamanho, do que a média em geral – o que seria o primeiro sinal de que o ataque ao World Trade Center tinha deixado a sua marca até mesmo no ventre dessas mulheres. Nove meses após o nascimento, as 38 jovens mães e seus bebês foram reexaminados. As avaliações psicológicas revelaram que muitos desenvolveram TEPT. Elas também tinham níveis anormalmente baixos do hormônio do estresse cortisol, uma característica que os pesquisadores estavam começando a associar ao distúrbio.
Mas o mais surpreendente foi que o bebê também apresentava níveis baixos de cortisol, o que foi observado através de medições salivares. O efeito foi mais acentuado entre os bebés cujas mães estavam no terceiro trimestre de gravidez no dia da tragédia. Um ano antes, uma equipa observou baixos níveis de cortisol nos descendentes adultos de sobreviventes do Holocausto, mas os pesquisadores presumiram que isso era o resultado de uma infância difícil: esta mudança biológica teria então sido causada por uma educação errática, as emoções vividas pelos pais, sendo permanentemente perturbadas pelo grave trauma que experimentaram. Mas estes novos resultados sugeriram um impacto ainda anterior: talvez as crianças tenham sido marcadas antes mesmo de nascerem.
Nos anos que se seguiram, a investigação realizada pela Dra. Rachel Yehuda e sua equipe e por outros, confirmou que as experiências negativas provavelmente influenciarão a próxima geração através de múltiplos caminhos. O mais óbvio envolve o comportamento dos pais, mas a experiência da mãe durante a gravidez, ou mesmo as mudanças ocorridas nos óvulos e espermatozoides anos antes, também provavelmente desempenham um papel. Uma influência que viria através das chamadas modificações “epigenéticas”, ou seja, alterações no funcionamento dos genes.
As implicações destas descobertas parecem terríveis, sugerindo que o trauma parental predispõe os filhos a perturbações mentais. Mas há algumas evidências de que a resposta epigenética é adaptativa e prepara essas crianças para também enfrentarem eventos difíceis.
VÍTIMAS DE UM EVENTO QUE NÃO VIVENCIARAM
A Dra. Rachel Yehuda encontrou pela primeira vez a transmissão intergeracional do trauma na década de 1990, pouco depois de sua equipe ter documentado elevadas taxas de TEPT entre sobreviventes do Holocausto na comunidade judaica de Cleveland, onde ela nasceu. Este estudo, o primeiro do género, causou agitação e, algumas semanas mais tarde, essa pesquisadora passou a dirigir um centro de investigação do Holocausto recém-criado no Monte Sinai. Segundo ela, o telefone continuou tocando. Mas surpreendentemente, a maioria das pessoas que ligaram não eram os próprios sobreviventes do Holocausto, mas sim os seus filhos, agora adultos. Sendo que uma pessoa em particular – denominada Joseph – chamava de forma recorrente, essa pessoa insistiu que a Dra. Rachel Yehuda estudasse pessoas como ele. “Eu também sou vítima do Holocausto”, disse ele.
Quando Joseph apareceu para a entrevista, ele não parecia uma vítima. Banqueiro de investimentos, bonito e rico, vestindo um terno Armani, ele poderia ter saído das páginas de uma revista de moda. Mas Joseph era constantemente dominado por um sentimento vago e opressivo: a impressão de que algo terrível iria acontecer e que ele poderia ter que fugir ou lutar pela sua vida. Ele se preparou para o pior desde os 20 anos, mantendo dinheiro e joias à mão e treinando boxe e artes marciais. Ultimamente ele vinha sofrendo ataques de pânico e terríveis pesadelos de perseguição.
Os pais de Joseph conheceram-se num campo de refugiados depois de vários anos em Auschwitz, e depois chegaram aos Estados Unidos em grande miséria. Seu pai trabalhava quatorze horas por dia e falava muito pouco, nunca mencionando a guerra. Mas quase todas as noites ele acordava sua família gritando de terror por causa de seus pesadelos. Sua mãe falava constantemente sobre a guerra, e antes de dormir, ela costumava contar histórias horríveis de membros de sua família sendo assassinados diante de seus olhos. Ela estava determinada a que seu filho tivesse sucesso e estava irritada com a recusa dele em se tornar pai. “Não sobrevivi a Auschwitz para que o meu próprio filho acabasse com a linhagem familiar”, proclamava ela. “Você tem uma obrigação comigo e com a história”.
O fato é que a Dra. Rachel Yehuda e sua equipe conversou com muitas pessoas com o mesmo perfil de Joseph: filhos adultos de sobreviventes do Holocausto que sofriam de ansiedade, tristeza, culpa ou invasões de imagens relacionadas ao genocídio, e que viviam relacionamentos disfuncionais. Joseph estava certo: a Dra. Rachel Yehuda precisava estudar pessoas como ele. Sendo que chegaram a conclusão que eles não podiam apenas examinar aqueles que telefonavam ao Centro de Pesquisa, tal como Joseph fez. Porque isso constituiria o que no jargão da investigação é chamado de “viés de amostragem”: Pois talvez aqueles que estavam telefonando fossem as pessoas mais traumatizadas que contactavam o Centro, e os pesquisadores não tinham provas de que essas pessoas fossem uma amostra representativa da população em geral.
Então, para criar uma amostra menos tendenciosa, a equipe de pesquisadores recuperou os contatos dos sobreviventes do Holocausto que foram estudados em Cleveland e analisaram os casos dos seus filhos. As análises confirmaram o que estava surgindo: os filhos adultos dos sobreviventes tinham maior probabilidade do que outros de sofrer de transtornos de humor e ansiedade, bem como de TEPT. Além disso, muitos deles tinham níveis baixos de cortisol, tal como seus pais que tinham a mesma síndrome.
O PARADOXO DO CORTISOL
O que esses resultados significavam?
Desembaraçar o emaranhado no que diz respeito ao trauma, cortisol e TEPT manteve a Dra. Rachel Yehuda e a muitos outros pesquisadores ocupados por décadas. Desde a década de 1920, sabe-se que a exposição à ameaça desencadeia a libertação de hormonas do stress, como a adrenalina ou o cortisol, que provocam uma cascata de alterações fisiológicas: a frequência cardíaca aumenta, a respiração intensifica-se, os sentidos tornam-se aguçados…etc. Essas alterações permitem que a pessoa ou ao animal de reagir – lutando, fugindo ou congelando para evitar que eles sejam detectados pela ameaça.
Há muito se pensa que o corpo volta ao normal depois que o perigo passa. Mas as ideias mudaram depois da Guerra do Vietnam, da qual muitos soldados americanos regressaram traumatizados. Em 1980, psiquiatras e defensores dos veteranos venceram uma longa luta para que o estresse pós-traumático fosse incluído na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III). Esta foi a primeira vez que a possibilidade de um trauma ter efeitos duradouros foi oficialmente reconhecida. No entanto, esse distúrbio permaneceu controverso. Muitos psicólogos acreditavam que a sua inclusão no DSM-III foi motivada por considerações políticas e não científicas, particularmente porque era completamente desconhecido como um perigo poderia continuar a influenciar o corpo muito depois de este ter desaparecido.
Para piorar a situação, estudos sobre veteranos do Vietnam produziram resultados inesperados. Em meados da década de 1980, os neurocientistas John Mason, Earl Giller e Thomas Kosten, da Universidade de Yale, mostraram que aqueles que sofriam de TEPT tinham níveis elevados de adrenalina, mas níveis mais baixos de cortisol do que os pacientes com outros tipos de problemas psiquiátricos. Como o estresse geralmente leva a um aumento desse último hormônio, muitos pesquisadores, inclusive a Dra. Rachel Yehuda, eram céticos em relação a essas observações.
Era difícil de acreditar que os baixos níveis de cortisol tivessem algo a ver com o trauma. Mas os resultados das pesquisas eram claros: metade dos sobreviventes do Holocausto tinha TEPT, e aqueles que tinham TEPT, também tinham níveis baixos de cortisol. A dúvida não era mais permitida no meio científico.
UM EFEITO PROTETOR
Mas por que o TEPT anda de mãos dadas com baixos níveis de cortisol, mesmo quando a experiência traumática é de longa data? E qual dos dois aparece primeiro? Uma pista importante surgiu de um estudo de 1984 realizado por Allan Munck e outros pesquisadores da Geisel School of Medicine de Dartmouth. Eles observaram que, entre os hormônios do estresse, o cortisol desempenhava um papel regulador específico. Se esse hormônio permanecer em níveis elevados por muito tempo, ele prejudica o organismo de diversas maneiras, como enfraquecendo o sistema imunológico e aumentando o risco de problemas como hipertensão. Mas, paradoxalmente, num contexto de trauma agudo, ele também pode ter um efeito protetor. Ou seja, ele freia a libertação dos hormônios do stress – incluindo a si próprio – e reduz potenciais danos aos órgãos e ao cérebro. Esse ciclo de feedback induzido pelo trauma voltaria o “termostato” do cortisol a um nível mais baixo.
A EPIGENÉTICA ENVOLVIDA
Em resumo, experiências difíceis provocam uma queda duradoura nos níveis de cortisol, o que torna o indivíduo mais vulnerável a desafios subsequentes. Mas como ocorre essa primeira queda?
Muitos estudos foram realizados para responder a essa pergunta. Foi descoberto primeiro que os veteranos da guerra do Vietnam com TEPT tinham um maior número de receptores de glicocorticoides, proteínas às quais o cortisol se liga para exercer as suas diversas influências. Em seguida, os pesquisadores se interessaram pelas chamadas modificações “epigenéticas” – ou seja, que alteram a expressão dos genes – que ocorrem nesses pacientes. Em particular, foi observado um fenómeno chamado “metilação”: onde determinados grupos químicos ligam-se ao DNA, aumentando ou diminuindo a sua transcrição.
Em 2015, foi demonstrado modificações epigenéticas em genes relacionados ao estresse em veteranos com TEPT. Estas alterações explicam em parte porque os efeitos do trauma persistem durante décadas. Especificamente, foi observado uma metilação reduzida em uma região importante do gene NR3C1, que codifica o receptor de glicocorticóide. Uma modificação que provavelmente aumenta a sensibilidade dos receptores produzidos.
Em última análise, esses receptores são, portanto, mais numerosos e mais reativos nestes pacientes, em particular devido a modificações epigenéticas, o que sugere uma explicação de como eventos difíceis levam a uma queda duradoura nos níveis de cortisol. Durante esses eventos, um aumento no nível deste hormônio encorajaria o corpo a produzi-lo em menor quantidade, através do mecanismo de feedback que descrevemos. O sistema então se recalibraria, tornando-se mais sensível ao cortisol, para se adaptar a essas baixas quantidades. Modificações epigenéticas e outros tipos de mudanças definiriam esse ciclo de feedback reinicializado. Mas se ocorrer um novo evento traumático, os níveis de cortisol seriam agora insuficientes para conter o sistema de stress, levando a uma libertação desproporcional de adrenalina e TEPT.
ÓVULOS MARCADOS PELO ESTRESSE, DÉCADAS ANTES DA CONCEPÇÃO
Algumas dessas mudanças epigenéticas também afetam os filhos de pessoas traumatizadas?
A descoberta de níveis baixos de cortisol em bebês, em 11 de setembro de 2002, sugeriu isso. Também foi encontrado essa baixa taxa entre filhos de sobreviventes do Holocausto cujos pais sofriam de TEPT, mesmo que eles próprios não tivessem a doença. Talvez os problemas de Joseph (lembra dele?…), não fossem apenas resultado do clima estressante e de luto que acompanhou sua infância, mas também de uma marca biológica transmitida por seus pais.
Na verdade, quando observaram mais de perto os descendentes dos sobreviventes, foi detectado diversas modificações epigenéticas no gene do receptor de glicocorticóides. Algumas dessas mudanças estavam presentes mesmo quando a mãe não sofria de TEPT, mas conheceu o genocídio quando criança, sugerindo que este período afetou os seus óvulos muito cedo, muito antes de ela se tornar mãe.
Dada a dificuldade de acompanhar indivíduos ao longo de múltiplas gerações, os cientistas recorrem frequentemente a estudos em animais para explorar a transmissão epigenética. Em 2014, Brian Dias e Kerry Ressler, ambos da Emory University School of Medicine, descobriram uma via epigenética intergeracional que atravessa o esperma. Eles submeteram ratos machos a um leve choque elétrico enquanto cheiravam uma flor de cerejeira, o que lhes causou medo do cheiro. Esta resposta foi acompanhada por modificações epigenéticas nos seus cérebros… e nos seus espermatozoides. No entanto, os descendentes masculinos destes ratos mostraram um medo semelhante das flores de cerejeira, enquanto modificações epigenéticas também foram detectadas no cérebro e no esperma; No entanto, eles próprios não foram expostos ao choque eléctrico! Esses efeitos duraram duas gerações. Ou seja, a lição aprendida pelo Avô Rato, de que o cheiro das flores de cerejeira significa perigo, foi transmitida aos seus filhos e netos.
BEBÊS AFETADOS NO ÚTERO
Além de alterar os ovócitos e os espermatozoides que encapsulam a nossa herança genética, por vezes muito antes da concepção, o trauma também parece influenciar o ambiente uterino. As primeiras pistas desta influência vieram de estudos realizados com filhos de mulheres grávidas durante um período de grande fome – neste caso, a fome que afetou os Países Baixos durante a Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas bloquearam o abastecimento alimentar do país durante seis meses. Os investigadores descobriram que o stress extremo, combinado com a privação nutricional, desencadeou vários problemas de saúde na descendência, tais como a susceptibilidade a doenças cardiovasculares, em maior ou menor grau, dependendo do trimestre de exposição.
Os bebês do 11 de setembro também foram afetados no útero. Estas eram particularmente crianças cujas mães estavam no terceiro trimestre de gravidez e tinham os níveis mais baixos de cortisol. Quando examinados nove meses após o nascimento, as mães foram entrevistadas e se descobriu que aquelas com TEPT (e baixos níveis de cortisol) relataram que seus bebês estavam anormalmente ansiosos e com medo de estranhos, o que acontecia muito menos entre mães sem TEPT.
Tudo isto levanta uma questão fundamental: de que forma o ambiente uterino deixa uma marca de trauma na prole?
O trabalho sobre os sobreviventes do Holocausto e os seus filhos adultos forneceu aos pesquisadores algumas pistas sobre este ponto. A história é complicada novamente e envolve uma enzima conhecida como 11-beta-hidroxiesteróide desidrogenase tipo 2 (11β-HSD2), que converte o cortisol em um composto inativo. Os sobreviventes do Holocausto, especialmente aqueles que eram mais jovens na altura dos acontecimentos, tinham níveis invulgarmente baixos desta enzima. Isto foi benéfico nas condições de privação alimentar a que foram expostos, porque uma quantidade menor desta enzima preserva o cortisol, que ajuda a converter as reservas do corpo em glicose para satisfazer as necessidades energéticas. Em última análise, este fenómeno promove a sobrevivência em caso de fome. Nos adultos, a concentração da enzima volta ao normal assim que termina a privação, mas nas crianças pode permanecer baixa durante muito tempo, dando origem a níveis anormalmente baixos nas pessoas expostas a longos períodos de desnutrição na juventude.
BURACOS NA PROTEÇÃO QUÍMICA
Nos filhos de mulheres que sobreviveram ao Holocausto, no entanto, foi encontrado o fenómeno oposto: os níveis de 11β-HSD2 eram mais elevados do que nos membros do grupo de controle. Um resultado apenas contraditório à primeira vista: durante a gravidez, o 11β-HSD2, geralmente concentrado no fígado, rins e cérebro, também atua na placenta. Em seguida, protege o feto da exposição ao cortisol materno, potencialmente tóxico para o cérebro em desenvolvimento. A enzima, particularmente ativa durante o terceiro trimestre, cria assim uma espécie de escudo químico, que degrada a hormona do stress antes de chegar ao bebé. Mas em mães traumatizadas, o seu baixo nível permite que maiores quantidades de cortisol passem para o feto. As altas concentrações da enzima observadas em seus descendentes seriam, portanto, uma adaptação que os protegeu dessas inundações de cortisol quando ainda estavam no ventre materno.
As crianças, portanto, não se contentam em absorver passivamente os golpes. Tal como os seus pais, elas sobrevivem a eventos traumáticos através de adaptações biológicas, elas próprios são por vezes capazes de se adaptar a estas mudanças.
É claro que a forma como os adultos traumatizados interagem com os filhos também influencia o seu desenvolvimento. A história em quadrinhos Maus, publicada pelo autor norte-americano Art Spiegelmann, narra essa infância extraordinária, vivida com pais que sobreviveram ao Holocausto; é uma das histórias mais impactantes sobre o assunto, que ajudou muitas outras pessoas a se abrirem sobre seu sofrimento. Muitos psicólogos e neurocientistas também analisaram famílias traumatizadas, e as suas descobertas continuarão por muito tempo.
Uma questão importante, que os pesquisadores estão a explorar ativamente, diz respeito às consequências das alterações epigenéticas relacionadas com o stress, particularmente aquelas que são repassadas à descendência: são necessariamente marcadores de vulnerabilidade ou ajudam por vezes a lidar com a adversidade?
Embora seja tentador interpretar a herança epigenética como um dano permanente que se espalha através das gerações, também poderia preparar os descendentes de pais traumatizados para desafios semelhantes aos enfrentados pelos seus progenitores. Quando as circunstâncias mudam, os benefícios conferidos por estas alterações desapareceriam ou até levariam ao surgimento de novas vulnerabilidades. Assim, a vantagem de sobrevivência desta forma de transmissão intergeracional depende em grande parte do ambiente encontrado pela sua linhagem.
REVERTENDO MODIFICAÇÕES EPIGENÉTICAS
Além disso, algumas das alterações observadas são reversíveis. Há vários anos, foi descoberto que a psicoterapia cognitivo-comportamental alterava a metilação do gene FKBP5, ligado à regulação do estresse, em veteranos com TEPT. A cura, portanto, também resulta em mudanças epigenéticas. Mais uma prova desta reversibilidade: Brian Dias e Kerry Ressler recondicionaram os seus ratos para que eles não tivessem mais medo das flores de cerejeira. Os roedores concebidos após esse “tratamento” ficaram livres da alteração epigenética observada em seus progenitores e não temiam mais o cheiro dessas flores.
Por mais preliminares que sejam, estes resultados representam um passo importante na psiquiatria: sugerem que, mesmo que as provações nos marquem biologicamente, é possível agir de acordo com a marca que deixam em nós. Assim, com os avanços no conhecimento, se espera que em breve os pesquisadores estejam mais bem equipados para ajudar não só aqueles que vivenciaram eventos traumáticos, mas também os seus descendentes.
Raquel Yehuda
Rachel Yehuda é professora de psiquiatria e neurociência, diretora do Centro de Psicoterapia Psicodélica e Pesquisa de Trauma da Escola de Medicina Icahn em Mount Sinai, Nova York, e diretora de saúde mental do James Veterans Affairs Medical Center J. Peters.
REFERÊNCIAS
P. Daskalakis et al., Intergenerational trauma is associated with expression alterations in glucocorticoid- and immune-related genes, Neuropsychopharmacology, 2021.
M. Bierer et al.,Intergenerational effects of maternal Holocaust exposure on FKBP5 methylation, The American Journal of Psychiatry, 2020.
E. Bowers et R. Yehuda, Intergenerational transmission of stress in humans, Neuropsychopharmacology, 2016.
Yehuda et al., Maternal, not paternal, PTSD is related to increased risk for PTSD in offspring of Holocaust survivors, Journal of Psychiatric Research, 2008.
Yehuda et al., Transgenerational effects of posttraumatic stress disorder in babies of mothers exposed to the World Trade Center attacks during pregnancy, The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 2005.